quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

UMA BREVE ANÁLISE DE “O POÇO” DE GUERÁ FERNANDES



            Bravo, bravo para Guerá Fernandes em “o poço”. Fiquei fascinada com a leitura deste romance. Transitei pelo vocabulário, pelas frases e parágrafos densos, sem ao menos desgrudar o olhar, um instante único de leitura, que não podia se desfazer, agora era ir até o fim, não podia esperar, como que enfeitiçada.
            Ao terminar a leitura e, ainda com o livro em minhas mãos, saltei dentro de mim, não seria a mesma, fui privilegiada com mais esta leitura, com mais este autor que possui o dom especial da palavra, longe está de ser apenas palavras, melhor mesmo é “não ser catador apenas”.
            Lembrando-me de Graciliano Ramos em Vidas Secas, nele, o personagem Fabiano dialogava consigo mesmo:
            “-Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta. Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só e, pensando bem, ele não era homem (...)
Corrigiu-se, murmurando:
-Você é um bicho, Fabiano”. (G.R)
Em Jeremias e Mirael, personagens de “o poço”, encontra-se o desejo de ser gente, de possuir uma identidade. Eu quis chorar, mas como Jeremias contive minhas lágrimas, sufoquei-as, talvez com o intuito de ser solidária com a personagem. Jeremias não sentia medo, nem dor, não chorava nunca, ele era temido e forte, vivendo como bicho, ensimesmado, assim como Fabiano, equiparado aos animais com os quais convivia, a cachorra baleia e os bois sarnentos, murmúrios apenas, como Jeremias, ou sem nome como Mirael. Este que viveu na escuridão, um filho que nasceu para ser nada, como Fabiano e os filhos, identificados como o menino mais velho e o menino mais novo.  “O mundo é um clarão”. Mirael entendeu, por uns instantes, sua condição, ele amanhã não existiria e interroga: “Mae! Que luz é essa? Que luz é essa, mamãezinha?”. É o desejo extremo de ser chamado pelo nome, um timbre, um som que o identificasse como tal.
Não posso continuar sendo o irmão, tudo tem um nome, os objetos tem nome, eu não tenho um nome.”(p.45).
Personagens “sem voz”, mas o discurso é de muitas vozes, que insistem em não se calar, denunciando a condição do ser humano. Qual é o valor de cada um?
O ser humano vivendo em condição de bicho, o lixo, os urubus, as baratas e os ratos, sem vez, sem voz, enredados pelas circunstâncias. Eis o cenário perfeito de o poço. Confundindo-se o espaço do bicho e do homem, por vezes complementando-se.
Ah, seria um urubu. Rei daquele lixo. Senhor da morte. Ave das sombras.( ...)pensou que gostava mais dos urubus do que da própria família”.(p.27.)
            Na narrativa o misticismo, o erotismo, o onírico, o belo, o raro, o lirismo poético, o real e o simbólico. Clarice um espetáculo de mulher: “Ela: barata voadora! Ela! Sim, feiticeira! Sereia atravessando os oceanos da imaginação dos homens”. De repente atravessando a imaginação do leitor: Que mulher é essa? Lembrei-me de Clarice, a Lispector e a sua “Macabéia, moça de extração sócio-cultural inferior”,  em a “Hora da estrela”. Como toda mulher e seus extremos, ficam os fragmentos que marcaram profundamente a minha leitura:
            “Da rua se ouvia a multidão. Entre eles ela foi atirada pelos soldados. Ela então se levantou, encarou a multidão. Eles gesticulavam em torno dela. E ela começou a sua caminhada. Ao virar a rua, em frente do lixo em que ontem trabalhava recebeu uma pedrada. E outra. E outra. E gritavam enquanto atirava.
            -Puta empestada!
            E de novo ela caiu. Outra pedra acertou-lhe o olho direito. O sangue rolou cegando-a, ela voltou-se abrindo os braços como um urubu ferido. (...)
            O sol parou sobre ela. E ela caiu pela terceira vez.
            E ela se ergueu de joelhos para os céus”.
            Era a sua saga, a sua crucificação dolorida, fria e consciente.
            “Ela que nunca teve ninguém por ela. Nasceu sozinha, nem mãe, nem irmãos. Nem um general com medalhas que se soubesse seu pai. Um desertor que por amor lhe desse uma história que justificasse nascer. Nascer explode! E basta.”
            Universos literários que se cruzam, se entrelaçam e se misturam: também no chão, Macabéia vive seu instante de saga, de procura, de encontro consigo mesma na reta final de sua existência, como podemos observar no trecho a seguir:
Cai no chão, agoniza e diz sua última frase enigmática quanto ao futuro: Várias pessoas observam a moribunda. Alguém pousa junto ao corpo uma vela acesa. Desta maneira Macabéia alcança, com a própria morte, a sua hora da estrela”. (C.L)
            Duas vidas, dois destinos que por ora se encontram, “a hora da estrela” de uma e o drama da outra, ou o drama de ambas? Quantos caminhos são possíveis trilhar, quantas análises nos permitem tocar?
            Clarice e Diana, mãe e filha se reconhecem, prostituta a mãe, prostituta a filha? Não Diana não poderia. “Diana não teria a mesma vida sua”. A mãe procura por ela incansavelmente. Ela que se tornou uma mulher. “Entre vocês cresceu uma menina enquanto a mãe era tomada pelos seus generais carregados de medalhas.” Ela veio para guiá-las. Ela era protegida, a guerreira, a enviada entre todas as prostitutas.
            A leitura do de o poço trás em si o significado do que existe de mais brutal: os seres mutilados, o inferno do existir só por existir, sem projeção, o ser estiçalhado, fragmentado, catando comida, catando miséria, a guerra do passado, a guerra do presente, a guerra do futuro? Sem trégua, mesclando dor, revolta, sofrimento com o desejo de, por alguns instantes, sentir que há luz, mesmo que ela seja um fio, um clarão, uma visão que possa ainda resgatar e re-significar vidas. “sobreviver exige perícias”.
            Autor e obra, perfeita harmonia, essenciais para aqueles que amam o universo literário. Narrativa ousada, recursos linguísticos e de linguagem pertinentes com a obra. Vocabulário enxuto, porém carregado de combinações que cativam e seduzem  o leitor. Valeu a pena, sempre valerá a pena conhecer e usufruir do que há de melhor do universo da ficção e da poesia deste autor revolucionário, maduro, consciente e completo.


                                                            Laura M.Bastos
                                                            Janeiro de 2011.

PENSANDO E ENTENDENDO O MAGISTÉRIO COMO FORMAÇÃO PROFISSIONAL

Sabe-se que, a princípio,  o magistério  era exercido somente pelos homens. Eles  tinham acesso a escolaridade, se tornavam tutores e eram contratados pelas famílias ricas  para ensinar as crianças (meninos) em suas residências. Os padres e os jesuítas, homens da  igreja, tinham a missão de ensinar assuntos ligados à religiosidade. À mulher não era oferecida nenhuma oportunidade de estudar, cabendo a ela os cuidados com os filhos, com o lar, a obediência e subserviência total ao homem.
                Após a Revolução Francesa, os caminhos do magistério se abrem para a mulher. Contudo, a desvalorização da profissão tornou-se um fato, uma vez que ensinar era apenas uma continuidade da vocação maternal das mesmas. Não precisava ter boa formação, eram suficientes o domínio das   letras e de cálculos básicos.  
                Neste instante, passa a haver uma abertura para a mulher no mercado de trabalho, porém, as diferenças de gênero são notórias, marcando profundamente a vida profissional das mulheres. A remuneração era algo insignificante, uma vez que o pensamento era de que ensinar nada mais era do que um “dom” que deveria ser cultivado. Na simplicidade do dia a dia, a mulher professora dava suas aulas sem maiores complicações, em uma época em que ensinar o bê-á-bá, adicionar e subtrair eram suficientes.   Ao homem cabia o papel de sustentar o lar.
                                Com as transformações ocorridas no mundo moderno, houve uma reestruturação do sistema educacional. As exigências se tornaram maiores, exigindo formação e preparação do professor para ministrar as aulas, mais informação e dedicação ímpar. O número de alunos aumentou significativamente com as novas leis implantadas para garantir educação para todos. O que hoje se tornou um desafio: lidar com turmas superlotadas, muitas vezes sem a menor condição para atender a todos com qualidade.
                Na atualidade, ministrar aulas não se restringe somente a aplicar métodos e técnicas, exige interação, multiplicidade e desdobramento do profissional que atua diretamente com os alunos. Estes que estão cada dia mais aptos a opinar,  criticar, exigir inovações e por vez perturbar a ordem, ser intolerantes uns com os outros a ponto de exigir flexibilidade do professor, ampliando suas aulas para trabalhar valores como cidadania, ética, justiça, respeito, democracia... Ou seja, não basta somente dominar a técnica e metodologias ligadas ao magistério, sendo necessárias mudanças de atitudes e hábitos no cotidiano escolar para atender às diversidades existentes.  
                De umas três décadas para cá, as famílias se encontram cada vez mais ocupadas e preocupadas com o sustento e desejo de ampliar a renda familiar em busca de uma vida melhor, cabendo muitas vezes à escola o papel de não apenas ministrar conteúdos, mas também auxiliar na educação ampla das crianças. Os filhos chegando com uma bagagem maior de responsabilidade ou falta dela por inadequações geradas no seio das famílias em relação à educação e sustentação de valores transmitidos pelos pais, desde muito cedo.  
                Percorrendo todo este caminho, percebemos que o perfil do educador mudou muito. Os homens e mulheres estão ocupando o espaço na sala de aula, mas ainda é território muito mais abrangente da mulher, ela que continua a mercê de uma remuneração inferior, salários atrelados ao passado que nada mais era do que uma forma de manter a mulher presa, dominada e dependente do homem. Ela deveria se manter submissa, dando aulas e cuidando do lar e das crianças, longe dos “perigos do mundo”.
A  sociedade atual é competitiva, o capitalismo é selvagem, a mulher trabalha para ajudar no sustento do lar. Ela também está mais vaidosa, gosta de ser bonita e apresentável. A carreira do magistério não é promissora neste sentido, pois continua a mentalidade antiga e ultrapassada de que é um “dom” ensinar, não importando remunerar bem esta mulher que educa as crianças, isto numa sociedade cada vez mais complexa e em salas de aulas cada vez mais lotadas e cobranças cada vez mais acirradas do profissional para atuar em sala de aula. Os homens que atuam no magistério hoje,  estão perdidos, desvalorizados de forma igual à mulher e pelo visto,  muito há o que se fazer em conjunto, para buscar a tal valorização financeira e profissional que tanto sonhamos.
                Onde tudo isso vai chegar? Talvez daqui a uns dez a vinte anos a qualidade da educação venha a atingir uma situação  lastimável, muito mais do que se encontra hoje. Inversamente a todas as demandas que estão no papel para serem cumpridas, a exemplo o Plano Decenal da Educação com suas metas e objetivos para serem implantados, porém pouco ou nada visando a melhoria e valorização dos profissionais que atuam nas salas de aula. Inclusive o Piso Salarial aprovado que não sai do papel e foge como um ratinho dos gatinhos professores e professoras. Neste quesito, agradeceremos nosso governador e representantes parlamentares que não estão nem aí para esta classe a tanto oprimida e insignificante para os poderosos que só pensam  neles mesmos, representantes do povo que querem ganhar política zombando e humilhando uma classe trabalhadora. Não há investimentos, pois educação não elege ninguém.
                Terminando presente artigo registro aqui uma citação que muito me chamou a atenção em um trabalho universitário relativo à profissão do magistério: “É preciso que haja uma tentativa de escolha profissional por uma “paixão”, mas que esteja atrelada à luta por uma educação melhor e não à simples aceitação de uma condição imposta socialmente. A mulher não deve  deixar de ter amor pela profissão, porém um amor que não seja “cego” (...) investir na educação é lutar pelo possível, pela mudança dessa educação que cada vez mais quer cada um no seu “devido lugar”, estagnado e obediente.”
                Enfim, sonhar ou deixar morrer o sonho? Lutar ou não por melhorias de nossos ideais? Questões que nos afligem dia após dias e continuarão nos perturbando profundamente. Percebo falta de expectativa no olhar dos meus colegas professores e professoras. No olhar de quem começa pouco “brilho”, pouca expectativa de ascensão na carreira. Daqueles que já tem um chão percorrido, desânimo causado pelo sistema, pela falta de valor, falta de humanidade, falta de tudo.
                Pena, muita pena! Ser professor deveria ser uma profissão que chamasse a atenção de bons profissionais, daqueles que querem, sonham e podem se aperfeiçoar para formar pessoas cada vez mais  capazes de atuarem com competência, pensando e agindo com maior equilíbrio numa sociedade tão marcada pelas injustiças, opressões  e desigualdades sociais
                                                                                                            Laura M.Bastos