Bravo, bravo para Guerá Fernandes em “o poço”. Fiquei fascinada com a leitura deste romance. Transitei pelo vocabulário, pelas frases e parágrafos densos, sem ao menos desgrudar o olhar, um instante único de leitura, que não podia se desfazer, agora era ir até o fim, não podia esperar, como que enfeitiçada.
Ao terminar a leitura e, ainda com o livro em minhas mãos, saltei dentro de mim, não seria a mesma, fui privilegiada com mais esta leitura, com mais este autor que possui o dom especial da palavra, longe está de ser apenas palavras, melhor mesmo é “não ser catador apenas”.
Lembrando-me de Graciliano Ramos em Vidas Secas, nele, o personagem Fabiano dialogava consigo mesmo:
“-Fabiano, você é um homem, exclamou em voz alta. Conteve-se, notou que os meninos estavam perto, com certeza iam admirar-se ouvindo-o falar só e, pensando bem, ele não era homem (...)
Corrigiu-se, murmurando:
-Você é um bicho, Fabiano”. (G.R)
Em Jeremias e Mirael, personagens de “o poço”, encontra-se o desejo de ser gente, de possuir uma identidade. Eu quis chorar, mas como Jeremias contive minhas lágrimas, sufoquei-as, talvez com o intuito de ser solidária com a personagem. Jeremias não sentia medo, nem dor, não chorava nunca, ele era temido e forte, vivendo como bicho, ensimesmado, assim como Fabiano, equiparado aos animais com os quais convivia, a cachorra baleia e os bois sarnentos, murmúrios apenas, como Jeremias, ou sem nome como Mirael. Este que viveu na escuridão, um filho que nasceu para ser nada, como Fabiano e os filhos, identificados como o menino mais velho e o menino mais novo. “O mundo é um clarão”. Mirael entendeu, por uns instantes, sua condição, ele amanhã não existiria e interroga: “Mae! Que luz é essa? Que luz é essa, mamãezinha?”. É o desejo extremo de ser chamado pelo nome, um timbre, um som que o identificasse como tal.
“Não posso continuar sendo o irmão, tudo tem um nome, os objetos tem nome, eu não tenho um nome.”(p.45).
Personagens “sem voz”, mas o discurso é de muitas vozes, que insistem em não se calar, denunciando a condição do ser humano. Qual é o valor de cada um?
O ser humano vivendo em condição de bicho, o lixo, os urubus, as baratas e os ratos, sem vez, sem voz, enredados pelas circunstâncias. Eis o cenário perfeito de o poço. Confundindo-se o espaço do bicho e do homem, por vezes complementando-se.
“Ah, seria um urubu. Rei daquele lixo. Senhor da morte. Ave das sombras.( ...)pensou que gostava mais dos urubus do que da própria família”.(p.27.)
Na narrativa o misticismo, o erotismo, o onírico, o belo, o raro, o lirismo poético, o real e o simbólico. Clarice um espetáculo de mulher: “Ela: barata voadora! Ela! Sim, feiticeira! Sereia atravessando os oceanos da imaginação dos homens”. De repente atravessando a imaginação do leitor: Que mulher é essa? Lembrei-me de Clarice, a Lispector e a sua “Macabéia, moça de extração sócio-cultural inferior”, em a “Hora da estrela”. Como toda mulher e seus extremos, ficam os fragmentos que marcaram profundamente a minha leitura:
“Da rua se ouvia a multidão. Entre eles ela foi atirada pelos soldados. Ela então se levantou, encarou a multidão. Eles gesticulavam em torno dela. E ela começou a sua caminhada. Ao virar a rua, em frente do lixo em que ontem trabalhava recebeu uma pedrada. E outra. E outra. E gritavam enquanto atirava.
-Puta empestada!
E de novo ela caiu. Outra pedra acertou-lhe o olho direito. O sangue rolou cegando-a, ela voltou-se abrindo os braços como um urubu ferido. (...)
O sol parou sobre ela. E ela caiu pela terceira vez.
E ela se ergueu de joelhos para os céus”.
Era a sua saga, a sua crucificação dolorida, fria e consciente.
“Ela que nunca teve ninguém por ela. Nasceu sozinha, nem mãe, nem irmãos. Nem um general com medalhas que se soubesse seu pai. Um desertor que por amor lhe desse uma história que justificasse nascer. Nascer explode! E basta.”
Universos literários que se cruzam, se entrelaçam e se misturam: também no chão, Macabéia vive seu instante de saga, de procura, de encontro consigo mesma na reta final de sua existência, como podemos observar no trecho a seguir:
“ Cai no chão, agoniza e diz sua última frase enigmática quanto ao futuro: Várias pessoas observam a moribunda. Alguém pousa junto ao corpo uma vela acesa. Desta maneira Macabéia alcança, com a própria morte, a sua hora da estrela”. (C.L)
Duas vidas, dois destinos que por ora se encontram, “a hora da estrela” de uma e o drama da outra, ou o drama de ambas? Quantos caminhos são possíveis trilhar, quantas análises nos permitem tocar?
Clarice e Diana, mãe e filha se reconhecem, prostituta a mãe, prostituta a filha? Não Diana não poderia. “Diana não teria a mesma vida sua”. A mãe procura por ela incansavelmente. Ela que se tornou uma mulher. “Entre vocês cresceu uma menina enquanto a mãe era tomada pelos seus generais carregados de medalhas.” Ela veio para guiá-las. Ela era protegida, a guerreira, a enviada entre todas as prostitutas.
A leitura do de o poço trás em si o significado do que existe de mais brutal: os seres mutilados, o inferno do existir só por existir, sem projeção, o ser estiçalhado, fragmentado, catando comida, catando miséria, a guerra do passado, a guerra do presente, a guerra do futuro? Sem trégua, mesclando dor, revolta, sofrimento com o desejo de, por alguns instantes, sentir que há luz, mesmo que ela seja um fio, um clarão, uma visão que possa ainda resgatar e re-significar vidas. “sobreviver exige perícias”.
Autor e obra, perfeita harmonia, essenciais para aqueles que amam o universo literário. Narrativa ousada, recursos linguísticos e de linguagem pertinentes com a obra. Vocabulário enxuto, porém carregado de combinações que cativam e seduzem o leitor. Valeu a pena, sempre valerá a pena conhecer e usufruir do que há de melhor do universo da ficção e da poesia deste autor revolucionário, maduro, consciente e completo.
Laura M.Bastos
Janeiro de 2011.